sábado, 19 de novembro de 2011

{Colunista convidada} Pão ou pães: é questão de opiniães



Hoje a nossa colunista convidada é a jornalista e amiga Sol Mendonça, uma querida amante da gastronomia, que, além de escrever sobre a boa mesa como freelancer, adora uma longa conversa ao redor dela. Este texto da Sol é uma deliciosa reflexão sobre uma pergunta que fiz certa vez: por que raios a minha empregada não se senta à mesa comigo? Para responder, Sol voltou lá na sua infância, na época em que todo mundo sentava junto para comer. Seja bem-vinda, Solzita, que certa vez disse que só não era mais fã deste blog do que a minha mãe! A gente é que é fã dos teus textos, escreve mais pra cá, vai!   



"Pão ou pães: é questão de opiniães"  
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

Já disseram que somos o que comemos. Também acho que somos o que conversamos à mesa, as ideias que trocamos, o que doamos e o que recebemos a seu redor – não só alimentos, mas olhares, prosas e até o silêncio, quase sempre seguido daquela expressão: “Está boa a comida,
ninguém fala, só se mastiga...” E alguém: “O melhor tempero é a fome...”.

Na minha infância, tanto na casa da minha mãe, onde jantei na maior parte das noites; quanto nas do meu pai, na carioca e no Sítio, na serra de Petrópolis, as três principais refeições
sempre foram feitas à mesa, com todo mundo junto. Nada de poder comer em qualquer lugar
e de qualquer jeito. Não se começava uma refeição enquanto todos não estivessem sentados.
Nem se levantava se alguém ainda estivesse comendo. Era hora de conversar e trocar
opiniões. Nunca hora nem de brigar nem de falar em dinheiro. Hora de prestar atenção ao
que se comia e de se honrar o alimento e o momento de estarmos juntos. Hora de aprofundar
as relações familiares, de conhecer o outro. Nada de tevê ligada. Nada de correria. A comida
sempre foi oferecida, tanto pela primeira, quanto pelo segundo, com entusiasmo.

Às vezes era minha mãe:

“Esse peixe está com uma cara ótima!”

Outras, meu pai:

“Olha o feijãozinho, que maravilha!”

“Vamos provar aqui a couve da dona Maria...”

Sempre tivemos pessoas trabalhando em casa. Pai e mãe “trabalhavam fora” e, quando
chegavam em casa, a empregada punha a mesa, nós jantávamos, e só depois que ouvia o
chamado do “Pode tirar...” ela vinha, recolhia os pratos e travessas, servia sobremesa e, pós-
tudo isso, ia jantar sozinha na cozinha. Era assim porque assim era.

Acredito que (não só lá em casa) as moças que trabalhavam na cidade jamais se sentavam para
jantar à mesa com as famílias, exceto num dia de aniversário para comer bolo.

Mas no Sítio sempre foi diferente: Dona Maria trazia a verdura que colhia de sua própria horta
(era comprado, não era sempre dado), e se outras meninas das redondezas aparecessem para
ajudar com a limpeza da casa e a comida - arroz e feijão feitos na panela de barro, um bom
assado no forno à lenha -, também almoçavam com a gente, todo mundo à mesa junto, ainda
que houvesse hóspedes, sempre agregando com uma boa prosa, uma novidade que estivesse
correndo, o afeto, o silêncio compartilhado.

Não sei dizer por que lá era assado e aqui era assim. Se me perguntassem, acho que
responderia que é porque lá a gente almoçava muito tarde, todo mundo já estava faminto,
e me esforçaria para acreditar nisso. Mas hoje me pego questionando: era só por isso? Por
que lá o óbvio se impunha (almoço e jantar não eram, afinal, momentos para se ver o outro,
conversar, compartilhar ideias?) e aqui não?

Se fosse só praticidade, a desculpa da falta de tempo, que damos para tudo, serviria para dizer:

- Senta logo todo mundo pra comer e acabar logo. Aí cada um pode levantar correndo, lavar
o prato, porque a fulana tem mais o que fazer do que ficar esperando a gente acabar de
comer...”

Não, comia-se separado aqui e junto lá por outras razões. A intenção não é criticar um ou
outro modo.

Mas já é hora de se saber que esta não é uma lei, cada um escolhe como acha que é melhor.
Talvez fosse o hábito: já era assim na casa da avó, na casa dos pais, e nunca se pensou em
mudar. Talvez, com boa vontade, posso imaginar que hoje, em muitas casas, a família e as
pessoas que lá trabalham jantem juntas à mesa ou pelo menos tomem o café da manhã. Eu
simpatizo muito com essa ideia por acreditar no que aprendi sobre o valor de se sentar à mesa
para dialogar e estreitar laços.

Me lembro que, na casa de uma amiga baiana, era como no Sítio: as empregadas comiam à
mesa, era normal. Na minha casa, hoje, também faço assim. Gosto de perguntar como vai
a filha da Dedé, mandar um livro emprestado pra ela ler, repartir com ela alguma fruta ou
legume que trago da feira. Gosto de contar uma receita que descobri, a viagem que fiz e de
mostrar pra ela um artesanato que comprei para inspirá-la, que sei que ela leva jeito e vai
poder vender.

Mas, no ano passado, uma outra moça que trabalhou aqui me perguntou:

- Por que você deixa eu sentar no seu sofá?

- Ué, você prefere ficar em pé? – foi o que respondi.

Levei um susto, não me lembrava da regra de que empregadas não podem se sentar no sofá
da sala. Ela me perguntou isso minutos antes de eu sair pra trabalhar, enquanto tomávamos
café juntas. E me contou que, numa casa em que ela trabalhava, a moça (na casa dos trinta
anos, ela disse) separou um copo e um prato para ela beber água e comer. O restante “é
nosso, da casa, tá certo?” – teria dito a jovem patroa.

Há quem possa considerar essa minha prosa uma besteira, mas me pergunto onde vamos
parar achando que ter coisas boas vale mais do que ser pessoas de bem.

Estive no interior de Minas na semana passada. Voltei com duas panelas de barro na mala. E
com esperança de ter trazido um pouco da sabedoria da mulher da roça, que cultiva flor, cria
bicho, coa um café delicioso no coador de pano e amassa pão com as mãos, para a cidade. E
não me faria mal um pouco da fala mansa, da pureza das meninas que pulam corda no quintal
e da paciência dos que esperam a chuva irrigar a terra onde as mudas (e os sonhos) foram
plantadas.

Lembrei Tom Jobim: A gente só leva da vida a vida que a gente leva.

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